Clipping

Voltar

Mais uma decisão do Supremo a favor dos doentes em caso de redução de incapacidade

08 de Abril 2025
Acórdão de 2 de Abril é similar ao de 12 de Março, referente a outra cidadã de Viseu. Em ambos os casos, o recurso da Autoridade Tributária, que perdera nas instâncias inferiores, foi negado.

O Supremo Tribunal Administrativo voltou a pronunciar-se a favor de uma cidadã e contra a Autoridade Tributária e Aduaneira (ATA) num processo que envolve a manutenção de benefícios fiscais quando há uma redução de incapacidade do atestado multiusos para valores abaixo dos 60%. É a segunda decisão no mesmo sentido em poucas semanas.

O caso é, em tudo, idêntico ao que foi revelado na semana passada pelo PÚBLICO. E a queixosa é também uma cidadã de Viseu, tal como aconteceu no caso resolvido por acórdão de 12 de Março. O mais recente é de 2 de Abril e os juízes da secção de Contencioso Tributário do STA também decidiram, de forma unânime, "negar provimento ao recurso" apresentado pela ATA. Este organismo perdeu a acção, a favor da queixosa, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, e recorrera, num primeiro momento, para o Tribunal Central Administrativo do Norte, que confirmara a decisão da 1.ª instância. Inconformada, a ATA tentou reverter esta decisão junto do STA, mas, mais uma vez, não viu os seus argumentos serem validados, mantendo-se a decisão a favor da queixosa.

A mulher, por sofrer de cancro da mama, tinha, desde 2015, um atestado multiusos que lhe conferia uma incapacidade de 60%, percentagem a partir da qual os seus portadores acedem a um conjunto de benefícios fiscais. Aquando da reavaliação desse atestado, em 2021, a mulher passou a ter incapacidade de 27%, referente à mesma patologia.

Ora, a partir desse momento, apesar de tentar junto dos serviços de Finanças de Viseu que lhe mantivessem os benefícios fiscais, perdeu-os, com a argumentação de que estes só se aplicavam a quem tinha uma incapacidade igual ou superior a 60%, o que já não acontecia no caso dela por força do resultado da reavaliação. A 10 de Outubro de 2022, a mulher deu início ao processo em tribunal que tem agora o seu desfecho.

Princípio da avaliação mais favorável

Ao contrário do entendimento da ATA, que baseia as suas decisões num ofício interno, os juízes não têm tido dúvidas em considerar que a intenção do legislador nesta matéria é que deve sempre ser considerada a avaliação mais favorável ao cidadão. Que é exactamente o que diz a mais recente revisão à lei relativa ao regime de avaliação das incapacidades, de 2021, ao referir que se aplica "o princípio da avaliação mais favorável ao avaliado" e que, "sempre que do processo de revisão ou reavaliação de incapacidade resulte a atribuição de grau de incapacidade inferior ao anteriormente atribuído, e consequentemente a perda de direitos ou de benefícios já reconhecidos, mantém-se em vigor o resultado da avaliação anterior, mais favorável ao avaliado, desde que seja relativo à mesma patologia clínica que determinou a atribuição da incapacidade e que de tal não resulte prejuízo para o avaliado".

Ou seja, se a pessoa teve um grau de incapacidade de 60% ou mais e, numa reavaliação, a sua incapacidade for considerada menor para a mesma patologia, deve prevalecer a anterior, com os respectivos benefícios daí decorrentes.

Um desses benefícios é em sede de IRS, que, quando o certificado multiusos apresenta uma incapacidade igual ou superior a 60%, é reduzido, sob duas formas - há uma parte do rendimento que não é tributada, o que permite que o salário mensal cresça, e o tecto que se aplica às deduções à colecta é mais alto do que nas regras gerais.

A ATA tem sido intransigente na recusa da manutenção destes benefícios para quem vê reduzido o grau de incapacidade para um valor abaixo de 60%, admitindo apenas que estas regras se mantêm durante o ano de transição, ou seja, quando se faz a reavaliação.

Um problema que se arrasta há anos e que o Governo anterior não foi capaz de resolver de forma definitiva, impondo antes uma regra de transição para atenuar a forma brusca como os contribuintes têm estado a perder estes benefícios de um ano para o outro. Assim, está em vigor um regime de transição relativo aos quatro anos posteriores à reavaliação, para quem fica com um grau de incapacidade entre 20% e 59%, e que prevê um benefício faseado que se sente apenas aquando do cálculo final do IRS, sem qualquer repercussão nos salários ou pensões que as pessoas recebem mensalmente.

"Os acórdãos do STA têm de ser acatados pela administração pública"

Os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça (STA) obrigam a Autoridade Tributária e Aduaneira a aplicar aquele entendimento a todos os cidadãos afectados pelo mesmo problema, mesmo que não tenham agido judicialmente? António Francisco de Sousa, professor da Universidade do Porto e doutorado em Direito Público explica que não, mas argumenta que há razões para que, perante decisões consecutivas no mesmo sentido desfavorável à ATA, esta admita mudar a forma de agir. "Os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo devem ser acatados pela administração pública. Tendo sido condenada, a ATA tem de acatar o sentido do acórdão, que é vinculativo para toda a administração pública naquele caso concreto. Havendo mais casos, vai continuar a ter de acatar e acredito que se coloque numa situação de mudar o seu comportamento, até porque poderá haver reflexos para os agentes que sejam reincidentes", indica.

Ou seja, a menos que a ATA encontre alguma razão constitucional para recorrer dos acórdãos do STA para o Tribunal Constitucional, o mais provável é que acate mesmo as decisões conhecidas e que poderão não ser as únicas, já que há mais processos judiciais relacionados com o tema. António Francisco de Sousa também ressalva que, havendo mudança de juízes no STA, o entendimento sobre esta matéria poderá passar a ser diferente, mas, até lá, é improvável que tal aconteça.

Portanto, não ficando a ATA obrigada agir da mesma forma com os contribuintes afectados pelo mesmo problema, há razões (financeiras, judiciais e de bom senso) para que considere mudar a sua forma de actuação, considera. "Um acórdão é executado pela administração, mas na prática, são agentes em concreto [visados], e, portanto, essas pessoas não vão reincidir. Por isso, a ATA é obrigada a acatar a decisão no caso concreto e, naturalmente, como pode seguir-se a responsabilização dos próprios agentes, estou convencido que acabarão por mudar o sentido da sua decisão actual", diz.

O entendimento da ATA tem sido contestado por diversas forças políticas e entidades, nomeadamente as que lidam directamente com doentes oncológicos, como a Liga Portuguesa Contra o Cancro. Na semana passada, a propósito do outro acórdão do STA, o presidente da liga, Vítor Veloso, disse ao PÚBLICO que era "uma notícia boa", acrescentando: "É uma situação vencedora em algo pelo qual nos temos batido." Em comunicado, a propósito do 84.º aniversário da LPCC, o oncologista acrescentou ainda que a decisão do STA "representa uma conquista significativa para a Liga Portuguesa Contra o Cancro e, mais importante, para todos os doentes oncológicos e pessoas com incapacidade em Portugal".

Vítor Veloso referiu que o acórdão "coloca a AT perante a necessidade de repor a legalidade das decisões tomadas desde 2019, em clara contradição com aquilo que determinava a lei, como a LPCC sempre defendeu", e deixou um alerta aos decisores políticos para "a necessidade de reposição integral da legalidade que foi posta em causa".

O PÚBLICO ainda aguarda resposta da ATA sobre a decisão do Supremo Tribunal Administrativo e eventuais implicações imediatas para os contribuintes.
Por Público a 10 de Abril 2025

Voltar
Apoios & Parcerias